A boazinha e dificuldade de dizer não com Lettícia Munniz

A boazinha e a dificuldade de dizer não com Lettícia Muniz

A socialização feminina ensina as mulheres a serem boazinhas com todo mundo, menos elas mesmas. Hoje, Clara conversa com Lettícia Munniz sobre a boazinha e a dificuldade de dizer não.


Se você não mudar, vai ficar sozinha, viu?

Seja mais delicada.

Menina não faz isso!

Ninguém gosta de mulher difícil.

Sorria.

Feche a perna.

Fale baixo.

Facilite a vida dele, o que é que custa ceder?

O quê? Você está ME dizendo não?

Menina tem que ser boazinha, menino que é danado.

A socialização feminina ensina as mulheres a serem boazinhas.

Com todo mundo, claro, menos elas mesmas. É o que Virginia Woolf chama de “o anjo da casa”. A mulher boazinha, ou o anjo da casa, vive para servir os outros, nunca diz não. Ela facilita tanto a vida de todo mundo! Portanto, é a ceder, oferecer, se calar, sempre suprimindo os próprios desejos e incômodos.


Afinal, isso é ser boazinha pra quem?
Não pra elas mesmas.

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A mulher boazinha


O ser boazinha mora nesse lugar de submissão e passividade. Desconstruir a ideia de bondade feminina não é querer que mulheres sejam más ou menos gentis, mas que entendam que elas não precisam ser agradáveis o tempo todo, aceitar tudo com sorriso no rosto, ou não expressar seus incômodos e pontos de vista. Incomodar, negar, pensar nos seus próprios interesses, tudo isso faz parte da vida – e quanto mais mulheres souberem disso, melhor.


Eu sou Clara Fagundes, futurologista, comunicóloga, e esse é o meu podcast Olá, bruxas.

 

#8 A boazinha e a dificuldade de dizer não

Clara Fagundes – Hoje estou aqui com a modelo, apresentadora e maravilhosa Lettícia Munniz, e hoje vamos falar sobre a mulher boazinha e a dificuldade de dizer “não”.

A boazinha e a dificuldade de dizer não, com Lettícia Muniz
Lettícia Munniz, convidada do Olá, Bruxas para o Episódio #8 A boazinha e a dificuldade de dizer não.


Clara – Olá, Lett, maravilhosa, que já participou do Nada Fútil também! Seja muito bem-vinda ao Olá, Bruxas. 

Lettícia Munniz (Lett) – Gente, a Clara é a Presidente da Instituição Podcasts do Brasil. Ela tem todos os podcasts sobre todos os temas, e são todos perfeitos. Você é bruxa real oficial, e eu amei ser convidada desse podcast, porque desde pequena eu acho que eu sou bruxa. Tinha uma floricultura no mercado que a gente frequentava, minha mãe sempre ia lá, e assim a gente virou muito amiga do dono. Eu lembro que eu fiz um aniversário e ele me deu de presente uma bruxinha do meu signo, e para mim tinha sido o melhor presente da vida, eu tenho ela até hoje tá lá no Espírito Santo. Foi o presente que eu mais amei na minha vida, tem uns 20 anos que eu ganhei essa bruxa. Eu usava o colarzinho da revista Witch [risos]. Eu sou bruxa real, eu era wicca, entendeu? Então voce chamou a bruxa para o seu podcast.

A boazinha


Clara – Quem você acha que é a mulher boazinha? Como você definiria a mulher boazinha?

Lett – Acho que a mulher boazinha é a mulher submissa. Porque você é muito boa, até você querer os seus direitos, até você querer que as suas vontades também tenham validade, né. Então a mulher boazinha não reclama, a mulher boazinha faz tudo dentro de casa, porque ela quer agradar. Mas quem agrada a mulher boazinha?

Clara – Essa sua pergunta foi maravilhosa. Você já foi ou é considerada uma mulher boazinha?

Lett – Eu fui muito mais do que sou hoje, porque fui criada muito pela minha avó. E a minha vó é de outros tempos, ela teve um casamento muito ruim, em que o marido dela foi muito ruim para ela. Minha avó é uma super super feminista que não sabia que era feminista, porque ela conseguiu se divorciar na época que ninguém podia divorciar, cuidou da minha mãe, criou minha mãe sozinha, com dois trabalhos. Criou e os meus irmãos sozinha com dois trabalhos, até morrer. Mas, na cabeça dela, o certo era você ser uma mulher boazinha para você conseguir um bom marido. Então ela teve esse relacionamento horrível com o pai da minha mãe, e por muitos e muitos anos ela teve um namorado que na verdade eles não podiam namorar, por muitos motivos. Ele queria que ela fosse morar em outra cidade com ele para eles poderem ficar juntos, mas ela não foi por nossa causa. Só que ele era aquele homem maravilhoso, aquele homem cavalheiro, aquele homem muito gentil, aquele homem que tinha um bom emprego, que tinha dinheiro, então ele era uma pessoa maravilhosa de fato né, mas o fato dele ter condições financeiras fazia dele um bom marido. Então a minha avó com ele viveu anos muito bons, e ela acreditava que a gente tinha que ser uma mulher boazinha para ter um bom marido. Por isso, a minha avó, uma mãe solteira, uma avó solteira, que trabalhou em dois trabalhos a vida inteira, que mesmo aposentada, continuou trabalhando para criar filhos e netos, que para mim é o maior símbolo de feminismo que eu conheço, ela me ensinou a vida inteira a arranjar um marido rico. Isso ficou muito em mim por muito tempo e eu gostava muito, acho que tem muito também do meu signo, sabe? Eu sou libriana, então libriano agrada, né? Eu sempre fui a que cozinhava, “ah eu faço isso pra você”, “ah eu lavo a roupa”, “ah eu faço a comida”, “ah eu arrumo”. Por muito, muito, muito tempo, mas na minha cabeça eu não estava sendo submissa. Depois de uns anos, percebi que estava sendo aquela mulher boazinha para agradar, conquistar. Já tive até rolo com um boy – nunca namorei, só agora com a Dani, mas tive esse relacionamento mais longo -, o cara tinha filho e até pro filho dele eu fazia as coisas. O cara cagava pra mim, mas era aquela coisa da mulher boazinha que acreditava que fazendo tudo aquilo que eu estava fazendo, eu conquistaria o papel de namorada, porque eu era uma mulher boazinha. 

Clara – Nossa, a gente tem muita coisa pra falar aí. Pra mim é muito claro que a mulher boazinha está naquele lugar da mística feminina, que Betty Friedan escreveu esse livro em 1963, onde ela falava qual é a mulher ideal, valorizada na época. Ela era doméstica, casta, passiva, feminina, delicada. A mulher boazinha segue sendo esse estereótipo até hoje – é a bela, recatada e do lar, é a mulher pra casar… São coisas que são muito associadas, porque o ser boazinha também é muito associada a ser amada, a ser escolhida. Então não é ser boazinha só por ser boazinha, mas também pra um cara te escolher, pra um cara te amar, que é isso daí da sua avó, de associar a boazinha a achar um cara rico para casar. Quando eu pensei nesse tema pra cá, pensei em alguém bem delicada e sensível, porque eu sou “braba”, eu sou a outra moeda da mulher boazinha, que também é ruim, porque é a mulher díficil [risos]. Ou você é boazinha ou você é difícil, não tem meio termo. Então é isso, a gente tem que equilibrar essas brabezas e essas delicadezas, essas bondades, ao longo da vida, de uma forma que seja saudável para a gente.

Clara – Falando nos conselhos da sua avó, quais foram os conselhos que você ouviu nesse sentido de ser mais boazinha?

Lett – Eu acho que é tudo isso que você falou. A mulher boazinha primeiro que ela é muito passiva, tudo tá tudo bem. E eu acho que é muito importante a gente pontuar também o mito da feminista “ai, ela é feminista, então ela odeia os homens e os homens têm que fazer tudo para elas”. Não! A diferença é: Não é que eu não vou cozinhar, não é que eu não vou fazer as coisas em casa, é só que eu não sou obrigada a fazer. Eu vou fazer porque eu quero, e a outra pessoa também tem que fazer. Então hoje eu vou fazer o jantar, amanhã você faz. A vida toda minha avó, como ela nos criou, ela tentou nos moldar à imagem de uma mulher boazinha, que seria a mulher que arranja um bom marido, um bom casamento – muito também do que ela via ao redor dela, das pessoas da nossa família. A minha mãe não foi uma mulher boazinha, não teve bons casamentos, não teve nenhum bom relacionamento. Então ela era a mulher solteira né, que não arranjou o marido rico, e aí minha avó via em volta a parentada ou até amigas da minha mãe, quais tinham conseguido um bom casamento. O sonho da minha avó era que a gente fosse dentista, ela queria porque queria, não sei quem que ela viu dentista que devia estar rica com o marido rico, que ela botou na cabeça que a gente tinha que ser dentista [risos]. A mulher boazinha e era o que a gente tinha que fazer, então tudo ela moldava a gente nesse sentido. Eu lembro de inúmeras vezes ela me falar sobre isso, tinha uns carinhas que a minha mãe ficou, namorou, que eram os que estavam bem sucedidos hoje né. Então a minha vó amargava que a minha mãe não estava com nenhum dos ricos, e acho que ela pegava muitas experiências de tudo que a minha mãe não era, e a gente tinha que ser. A gente tinha que ser boazinha, não podia brigar (minha mãe tem um gênio muito difícil), cozinhar, fazer as coisas, ser dentista, se vestir assim… Lembro que na rua da casa dela tinha uma loja de roupa, e toda vez que eu ia lá, até depois de grande, ela me levava nessa loja e falava assim: E essa roupa? E essa? E eram todas aquelas roupas com cara de dondoca, sabe? [risos]. Então ela tentava muito moldar a gente de tudo, tanto na educação, quanto na profissão, maneira de se vestir… Porque a mulher boazinha ela é um conjunto da obra, né. Ela não é a mulher que faz janta e faxina. Ela é um conjunto da obra: Ela é passiva, ela é obediente, ela é linda, ela marca presença quando ela vai com um homem onde ele vai. A minha vida inteira ela tentou fazer a gente ser esse conjunto. E não deu [risos], foi uma grande decepção para minha avó, mais ainda que ela não teve tempo de ver quando a minha carreira virou. Então a pobrezinha, até o fim dos dias dela deve ter amargado. Eu não sei quem é pior: Eu, artista, ou minha irmã, professora de história [risos].

Clara – Eu acho que os conselhos que eu mais ouvia relacionados a ser boazinha era sobre ser mais fácil. Por que você não é mais fácil? Por que você não cede mais? Por que você não fala mais baixo? E também eu perguntava muito “mas porque homem pode?”. Isso era uma coisa que para mim não entrava na minha cabeça: Por que eles podem e eu não posso? E a resposta era: “Ah, tem que entender que para mulher é diferente, tem que ser mais centrada, mais responsável”. Daí também entra no boazinha, porque é o educada né, o “comportadinha”. 

Lett – Não, falar baixo, amiga… [risos]. Eu falo assim né, como tô falando com você. As pessoas constantemente acham que eu sou grossa. Sempre falei nesse tom, que descobrimos que é um tom de uma comunicadora. Eu não falo alto, eu não falo grossa, eu posto minha voz. É uma coisa diferente, mas ninguém nunca viu como uma coisa boa. Um homem falar assim provavelmente é uma coisa muito boa, mas desde muito nova eu sempre ouvi o tempo inteiro “fala baixo”, “fala baixo”, “fala baixo”. 

Clara – E hoje você tem características da mulher boazinha? Você falou “eu já fui, talvez ainda seja”… Essas características, quais são elas? Elas oprimem você de alguma forma?

Lett – Poxa, amiga, talvez eu ainda seja, porque eu acho que é meio enraizado. E junta com esse meu negócio de libriana… Eu abandonei um pouco isso recentemente, mas até ano passado eu era mulher que cozinhava, sabe? Que fazia a janta, que fazia o almoço, que fazia o café da manhã. Só que isso tava me estressando, porque me atrasava, ou às vezes eu deixava de estar fazendo alguma coisa para mim, alguma coisa de trabalho, por causa disso. E aí esse ano – olha só que demorado né -, eu me libertei. Eu gosto de cozinhar para os outros, eu tenho esse prazer, mas eu não tenho que cozinhar, sabe? Esse ano que eu consegui abandonar isso, e é difícil, porque assim como várias outras opressões, como várias outras maneiras da gente fazer as coisas, elas estão enraizadas na gente por conta dessa cultura, dessa sociedade super machista que a gente foi criada, viveu a vida inteira. Não existiu nenhum momento da nossa vida que a gente não viveu num mundo machista. Então acho que tá muito enraizado, eu tenho muita dificuldade em dizer “não”, eu tenho muita dificuldade em agir de uma maneira mais incisiva, principalmente no trabalho, todo tempo. O meu último trabalho antes de eu trabalhar para mim, eu fazia uns programas de TV, eu era produtora. Eu tinha um salário, o diretor tinha outro, aí saiu o diretor e eu fiquei com toda carga – a dele e a minha. E aí eu não ganhava mais, eu continuei ganhando o mesmo salário. Os outros diretores homens ganhavam mais, e eu, que além de tudo, fazia duas funções, não ganhava. Fui pedir um aumento, e ouvi aquele famoso “não tem”. Mas tinha muito mais né, porque estavam pagando duas pessoas, e agora era só uma, que recebia menos. Não estava pedindo para dar o salário dele mais o meu, eu só estava pedindo para ganhar o que ele ganhava, e a resposta foi “não”, obviamente. Eu fiquei pensando nisso, como eu sempre fui em todos os meus trabalhos. Eu sempre trabalhei com comunicação, porque eu sou formada em rádio e TV, aqui em São Paulo eu sempre trabalhei em TV, produtora, e é um meio muito masculino, muito. E se eu olhar para trás vejo uma coisa que eu sempre sentia na época, mas hoje olhando para trás sinto mais ainda: A dificuldade que eu sempre tive de me impor. Porque se você se impõe enquanto mulher, você é grossa, né?

Clara – Exato. É difícil, né? Para o homem, coragem é algo de assertividade, de liderança, é um cara que se coloca. Realmente são leituras muito diferentes quando a gente pensa em gênero.

A dificuldade de dizer não


Clara – Você falou que tem dificuldade de dizer não. Qual é a maior questão para você? O que você pensa quando pensa tipo “ai, eu vou ter que dizer não para alguém”?

Lett – Amiga, minha maior dificuldade o tempo inteiro é essa coisa da diferença da mulher para o homem. O homem, até sendo grosso, até sendo estúpido, tá tudo bem. Nessa área [comunicação] as coisas estão melhorando muito, mas na área do audiovisual tem muitos homens grossos, diretores, pessoal que manda sendo ríspido, e tá tudo bem, ele é assim. Quando é uma mulher, nunca ela tá certa, ela é grossa, ignorante, uma vaca, e xingamentos muito piores. Então a minha dificuldade em dizer não sempre foi não querer parecer grossa. Porque eu já não sou uma mulher delicada, eu não sou uma mulher fofinha, eu já falo “grossa”. Na minha cabeça, esse combo completo com o “não” me tornava a total vaca, sabe?

Clara – Sim! Eu acho que a mulher boazinha em mim mora aí também, que é no se impor. Eu faço, eu saio de ruim, saio de brava, mas faço isso com dor de barriga. A mulher boazinha tá lá, revirando meu estômago, e dizendo “não! fique quieta, pelo amor de Deus! pare com isso, tu tá fazendo a gente passar vergonha!”. É tremendo e sendo brava. Acho que aí também entra muito a minha mãe. Minha mãe é uma pessoa que diz “não”, minha mãe é uma pessoa que fala “olha, se imponha”. A minha avó tinha um ditado bem feinho, que falava assim: “Quem muito se abaixa, o c* fica à mostra” [risos]. Então é basicamente isso: Não deixa, não abaixa, porque vão montar. E aí eu falo, eu digo “não”, eu entendo que não é falta de educação dizer “não”, mas a boazinha tá lá dentro de mim me fazendo tremer a mão. Tremer a mão e sendo brava apesar disso.

Continua…



Escute todo o episódio #8 A boazinha e a dificuldade de dizer não com Lettícia Munniz




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27 anos, nordestina em SP, publicitária graduada e pós graduada pela USP, escritora e apaixonadíssima por moda, cinema, viajar e sorvete. Fico entediada bem rapidinho com as coisas, então, costumo fazer várias ao mesmo tempo. Vivo à procura de encanto.

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