A amante ideal
Para compreender a sátira, leia a receita da amante ideal de Carlos Heitor Cony, alardeada como uma das cem melhores crônicas brasileiras.
Do ponto de vista poético, jamais saberia definir a amante ideal, nem sequer a namoradinha descompromissada, da qual Pablo Neruda e Vinicius de Moraes, cada um a seu modo, cantaram o gesto, a graça e a glória. Tampouco saberia produzir um ensaio moral sobre a dita amante ideal – isso porque ela, antes de amante, é mulher. Portanto, independente como é, jamais poderá ser ideal para alguém – além dela mesma, é claro.
Ao longo de alguns anos no nem tão duro exercício de ser machista de bem, o autor cruzou e descruzou com mulheres, amantes umas, amadas outras – todas com suas minúcias, espantos e triunfos. No calor do momento, esqueceu que eram ainda únicas e livres, o que é uma banalidade da carne, da sua carne e do seu espírito. Cada qual tinha seu gosto, sua cólera, seu roteiro de prazer e dor.
A amante ideal não existe. No entanto, sonhar é preciso. Ou seria navegar? Sei lá.
Sei que será bela, necessariamente, pois a beleza – assim como a gostosura – é uma poesia recitada por quem lê. Isso não significa que será esbelta. Ou alta. Ou que terá enormes seios redondos e pernas torneadas pelo spinning-seu-de-cada-dia. Significa, porém, que será dona de si, feita ao seu próprio gosto, em todos os seus sentidos e apetites. Terá em síntese, às vezes de forma incompleta, tudo o que procura para si mesma e buscará sempre atingir o que planeja para o seu amanhã.
Será honesta, o suficiente para, quando o trair, deixar bem claro, a ele e ao outro, que a dona, a deusa e a escrava dela continua a mesma, ou seja, ela.
Voltará quando lhe aprazer e perdoará somente o que puder ser esquecido sem sucedentes. Será um pouco sadomasoquista e, com atitudes, coroar-se-á rainha no posto de amante ideal. A partir daí, esperará nada além do que o melhor do outro ou fará questão de seguir o seu reinado com outro que se prontifique a ser também o seu amante ideal. Sempre elogiando grandes acertos e perdoando pequenos erros, que se juntam numa mistura de raiva, amor e desejo, para desabar no gozo estrondoso do sexo de reconciliação.
A amante ideal terá, independentemente da idade, a mesma preparação emocional que o companheiro escolhido. Pois a amante ideal sempre escolherá bem. Mesmo quando, ao perceber que errou, opte por fazer uma nova escolha.
Um dia, descobrirá que a deseja espantosamente, de 15 em 15 dias, de mês em mês, até que o tempo tenha passado, 15 anos ou mais, e ela tenha vivido, com sua força e sua tenacidade, o caminho e o futuro que traçou para si. As duas ou três mulheres com quem saiu seguiram as suas vidas, enquanto os homens que a conheceram por ela se apaixonaram e lutaram para não deixá-la ir. Com o tempo, se vier a aceitá-lo de volta em seu coração, poderá repetir em causa própria o velho ditado de que peixe que foge da água morre na praia ou retorna ao mar.
A amante ideal sabe que merece o melhor a cada instante. Buscar alcançá-lo de maneira incansável é o diferencial que torna a mulher verdadeiramente ideal, pois as mulheres que não o fazem, acabam por esperar. Em sua ingênua espera, desesperam-se quando o outro erroneamente traduz o que sentem como cobranças abomináveis, alusões torpes, reivindicações mesquinhas. E quanto mais amarem ou pensarem que amam homens desmerecedores, mais abomináveis parecerão as suas inseguranças e falhas.
Ela mesma já está segura em seu posto de amante ideal, e nada pede, pois tudo tem. É resiliente, astuta e ambiciosa. Conhece suas fraquezas, seus medos, suas misérias. Por isso observa, com neutralidade: “Você hoje está muito abatido”. As outras mulheres, quando pronunciam essa mesmíssima frase, estão sendo oblíquas, na verdade estão insinuando que você deveria mesmo ter dormido mais. Ou simplesmente tirado a barba.
A amante ideal terá sempre na bolsa o lencinho de papel que limpará o seu rosto do batom – afinal, sabe que combina mais com ela do que com você. E quando você estiver triste, mas triste de não ter jeito, ela o fará sorrir até a barriga doer e seguirá o seu dia com as boas energias que emana.
Ventos, tufões, ventanias, coriscos, terremotos, convulsões da terra, da carne e da alma, tudo o que varre e destrói o homem tem na amante ideal o sismógrafo que registra a catástrofe. Ela é dotada de um sentido especial para prever essas confusões, mas ela está, a amante ideal, pronta para dizer: “Já passou”. Ou o melhor: “Estamos juntos!”. Em certo sentido, é Moisés e a mulher é Jesus Cristo, sempre disposta a mostrar-lhe o melhor jeito de enxergar o mundo.
Mas a amante ideal é sobretudo a mulher que não precisa compreender, pois ela se compreende por você e por ela. É como as coisas que admira sabendo que jamais poderá ter. Isso porque não se esgota nunca, e quando o surpreende fatigado, exausto de outros fracassos, ainda assim, não para. E nem desacelera para ouvir cobranças machistas no pé de ouvido quando, ideal como é, tem o poder de escolher ouvir o que quiser, de quem bem entender.
Fotografia por Emmanuel Rosario. Clique para ver o Flickr do fotógrafo!
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