Gentileza, uma escolha
Quando passo distribuindo meus “bom dias” carregados de sotaque nordestino, vou recolhendo comigo reações e impressões.
Essa obsessão minimalista nasceu há uns anos atrás, quando uma tia distante saiu espalhando aos quatro ventos como eu era bem educada, um anjo na Terra (!) essa menina. Longe de mim discordar de elogios porque, né, nessa sociedade tão crítica, é até um mudar de ares, mas quis entender por quê. Por que eu, que não sou lá um poço de fofura, havia deixado uma impressão tão boa em alguém com quem tinha zero intimidade?
E, então, caiu a ficha. Minha tia super distante caíra de encantos pelo “boa tarde” acompanhado do sorriso aberto que dei durante um encontro casual no shopping.
Fiquei encucada.
Quem, afinal, ficaria impressionado com o mínimo de cortesia instintivo em qualquer situação social?
A partir de então, fui captando as estranhezas das pessoas em relação à gentileza. E não precisei prestar muita atenção para captar o susto do cobrador quando o cumprimentei no ônibus. O despreparo da atendente quando perguntei o seu nome para poder chamá-la por um vocativo melhor do que “moça”. A mulher que claramente me julgou lésbica por dar passagem e segurar o portão na saída do prédio comercial. O homem na rua que se armou pra cima de mim porque respondi um “bom dia” sem olhar para o chão.
As expressões, percebi, costumam transitar entre “ok, e onde você vai chegar com isso?” e “eita, será que eu conheço você e não me lembro?”
Como provas disso, estão os porteiros do meu prédio que sigo cumprimentando há um ano para receber um aceno de cabeça em troca – quando muito. Ou o “que coisa de interior!” que um desiludido amigo meu (também nordestino) ouviu ao lançar um “boa tarde” animado no elevador. Como castigo pela sua interioraneidade, o coitado foi obrigado a subir os vinte e poucos andares subsequentes querendo se enfiar num buraco.
Sim, sou nordestina do coração quente exilada em São Paulo e por isso tenho consciência de quão natural é o atrito de costumes. A estranheza à gentileza, porém, não é exclusivamente paulistana. E não imagino que seja atual, já que ainda não aprendi a distinguir o romantismo da realidade nos “no meu tempo não era assim” que sempre ouço.
Eis o que aprendi nos meus anos de pesquisa de campo: a gentileza não deve depender do retorno. Ela deve vir de você ou causará tamanhas frustrações que será substituída por uma profunda preguiça social em que você não se atreve a mover sequer um dedo por ninguém, pois em determinado momento – e certamente em vários outros – agiu como sentiu que seria cortês e recebeu em troca grosseria. Ou silêncio. Ou “ingratidão”. E esse é o ponto principal de tudo: a gentileza não deve aguardar retorno, pois, se o fizer, não é gentileza: é troca. E uma troca que, quase necessariamente, o outro (escolhido para receber suas delicadezas) não solicitou. Ser gentil é, portanto, uma escolha quase egoísta: deve depender só de você.
Aí você questiona: ser gentil, por quê, então?
Porque ainda há os que sorriem de volta e respondem:
“Bom dia!”
E nesse momento você descobre que eles fizeram, dentro deles, a mesma escolha que você.
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Foto por Vic. 夏.
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